Ontem, dia 09/11/2023, foi lançado o álbum digital Follow My Drone, que gravei, sob o pseudônimo The Unruly, em parceria com um amigo de longa data, o Aran Carriel, da banda Autoboneco, na ativa há 30 anos. Essa collab já havia acontecido em 2022, quando fizemos a sombria música "Father Nature!", mas é a primeira vez que a colaboração resulta em um álbum completo. E com um conceito bastante distinto da primeira parceria, primeiramente por ser um duo de guitarras.
O álbum foi gravado ao vivo em julho de 2023 com um simples gravador digital de mão, já que o propósito era uma produção com estética lo-fi:
[…] lo-fi (contração de low-fidelity: baixa fidelidade), muito comum nas bandas de rock da década de 1960 e depois resgatada nas cenas punk e hardcore da década de 1980 e nas cenas de metal extremo e grunge da década de 1990. Essa estética é caracterizada pelo uso, muitas vezes deliberado, de características que geralmente são percebidas como imperfeições indesejáveis em gravações ou performances, ou seja, daquilo que é interpretado ou considerado normativamente como imperfeições, com ênfase particular nas imperfeições na própria tecnologia (PASSOS; FORNARI, 2023, p. 9).
Além disso, tínhamos como conceito realizar uma sessão de improvisação (criação musical espontânea durante a performance, sem base em algo preconcebido) "desatada", sem nos preocuparmos com tom, escalas, progressões harmônicas e tudo o mais, nem sequer com um gênero musical definido. A ideia era explorar timbres, ambiências, silêncios e ruídos, próximo do que é feito na improvisação livre.
A improvisação livre surgiu na metade da década de 1960 por influência do free jazz e da música contemporânea, tornando-se um movimento coeso a partir do grupo britânico Joseph Holbrooke, formado pelo guitarrista Derek Bailey, o baixista Gavin Bryars e o baterista Tony Oxley. O próprio Bailey (1993, p. 84, trad. nossa) afirma que “[…] muito do ímpeto para a improvisação livre veio do questionamento da linguagem musical. Ou mais corretamente, o questionamento das ‘regras’ que regem a linguagem musical.”. A improvisação livre não exige um nível predeterminado de técnica e entendimento, já que se trata de uma prática autônoma, o que “[…] significa que o improvisador não precisa de ‘autorizações’ ou conhecimentos altamente especializados para a ação criativa.” (FALLEIROS, 2012, p. 16), o que não significa que o improvisador não necessita de quaisquer conhecimentos e que pode ser criativo de maneira totalmente espontânea. A improvisação livre se diferencia da improvisação “tradicional” por se afastar dos idiomas constituídos, que estabelece diretrizes a serem percorridas; ao contrário, “[…] desarticula a organização de funções e permite o trânsito sem caminhos traçados previamente.” (FALLEIROS, 2012, p. 89), ainda que sejam mantidas certas leis e procedimentos para esse trânsito. Ou seja, a improvisação livre tem como foco a matéria sonora, enquanto a improvisação “tradicional” tem foco nas notas. A improvisação livre é realizada com sons, e a nota é apenas um dos diversos aspectos do som (HALL, 2009). Contudo, a improvisação musical pode estabelecer seu próprio idioma e regras sintáticas, e assim, a improvisação livre não é totalmente livre das restrições da organização idiomática, mas enfatiza o processo sobre o produto, enquanto outras formas de performance enfatizam o objeto musical resultante como objetivo final (MENEZES, 2010). E diante disso tudo, trata-se de um tipo de música que quebra com convenções e conceitos estabelecidos há muito tempo:
A improvisação livre tem seus adeptos e praticantes incondicionais, mas também um grande número de detratores que se sentem insultados pelo desrespeito que essa música demonstra pelas convenções musicais e sociais. Não apenas os músicos são desafiados por essa música; a participação do público também pode assumir formas novas e criativas. Ao contrário da “forma artística” acabada e pronta a ser consumida passivamente numa economia de mercado de massas, a improvisação livre convida o público para o cerne do processo criativo e estabelece com ele uma estreita cumplicidade como testemunha de uma experiência irreproduzível. (MENEZES, 2010, p. 18, trad. nossa).
Ou seja, a impro livre é um fazer musical contraventor, marginal, iconoclasta, que combina muito bem com a rebeldia punk e com a agressividade e soturnidade do metal extremo, o que se encaixava perfeitamente ao que nós, Aran e eu, tínhamos em mente. E ainda que Follow My Drone não seja resultado de uma sessão de improvisação livre per se, já que em vários momentos são utilizados conceitos idiomáticos (punk ou noise rock, por exemplo), muito do conceito está lá.
O resultado nos agradou bastante, a ponto de nos motivar a manter a colaboração ativa. Ano que vem tem mais.
Referências:
BAILEY, Derek. Improvisation: its nature and practice in music. Boston: Da Capo Press, 1993.
FALLEIROS, Manuel Silveira. Palavras sem discurso: estratégias criativas na livre improvisação. São Paulo, 2012. 265 f. Tese (Doutorado em Música) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo.
HALL, Thomas. Free Improvisation: a practical guide. Boston: Bee Boy Press, 2009.
MENEZES, José Manuel Amaro de. Creative process in free improvisation. Sheffield, 2010. 94 p. Dissertation (Master of Arts in Psychology for Musicians) – Department of Music, University of Sheffield.
PASSOS, Leonardo Porto; FALLEIROS, Manuel Silveira. A pedra de uma tonelada: como o rock 'n' roll ficou pesado. Orfeu, Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 1-25, set. 2023. DOI: 10.5965/2525530408022023e0103. Disponível em: https://revistas.udesc.br/index.php/orfeu/article/view/24006.
Comentários
Postar um comentário
Deixe aqui seu comentário. Debates são bem-vindos, desde que com a devida educação.